sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O foco na oralidade na condução de Hugo Rodas

Por: Cristina Leite



A Fala é música. O texto de um papel ou uma peça é uma melodia, uma ópera ou uma sinfonia. A pronunciação no palco é uma arte tão difícil como cantar, exige treino e uma técnica raiando pela virtuosidade. Quando um ator de voz bem trabalhada e magnífica técnica vocal diz as palavras de seu papel, sou completamente transportado por sua suprema arte. Se ele for rítmico, sou involuntariamente envolvido pelo ritmo e tom de sua fala, ela me comove. Se ele próprio penetra fundo na alma das palavras do seu papel, carrega-me com ele aos lugares secretos da composição do dramaturgo, bem como aos da sua própria alma. Quando um ator acrescenta o vívido ornamento do som àquele conteúdo vivo das palavras, faz-me vislumbrar com uma visão interior as imagens que amoldou com sua própria imaginação criadora. (STANISLAVSKI,1983)

Levando em consideração a ênfase dada ao trabalho com a oralidade durante os ensaios observados, este tópico versará sobre o trabalho oral, ou como definiria o próprio Hugo Rodas, a dramaticidade da palavra. Houve ensaios em que este talvez tenha sido o tema gerador de todas as propostas, dada sua recorrência e relevância.
Conforme FORTUNA (2002): “Voz é feitiço, enigma, poder. Voz é alma. Voz, com ela o ator atrai ou separa, une ou cinde, envolve ou rompe. Voz, magia viva, lenta ou rápida. Rara! Voz, instrumento nobre do ator. Seu corpo estético-erótico. Sua carne amante e rebelde”. Essa definição pode ser percebida durante muitos exercícios, pois Hugo buscava extrair o máximo de expressividade da palavra proferida que, também, precisava ser sentida, cujo significado deveria também ser percebido no corpo. Ao comando do diretor, de grande sensibilidade estética, podíamos perceber o quanto os atores tinham um melhor desempenho ao seguirem as orientações de Hugo Rodas.
De forma geral, pode-se dizer que uma maneira linear de se explorar a palavra seria confortável, pois traria respostas prontas, de maneira estática, parada, algo totalmente contrário ao trabalho proposto por Hugo Rodas. Em sua direção, as palavras passam a ocupar um terreno movediço, totalmente inusitado, em que não basta ser proferida: é preciso que saia das “entranhas” do ator, ou seja, é necessário que o corpo esteja totalmente presente e junto à fala, para que a mesma não se torne algo perdido em si, pois, segundo GROTOWSKI:
Porque por meio de diferentes estímulos do corpo, aplicados do exterior, podem causar uma reação de todo o corpo. Existem alguns impulsos que provêm do interior do corpo e que precedem uma reação do corpo, mesmo que seja inarticulada. São esses os impulsos que conduzem a voz (...) A voz é uma extensão do corpo, do mesmo modo que os olhos, as orelhas, as mãos: é um órgão de nós mesmos que nos estende em direção ao exterior e, no fundo, é uma espécie de órgão material que pode até mesmo tocar. (GROTOWSKI, 2010, p. 158, 159)

Há, portanto, nos ensaios, uma busca por um trabalho orgânico, com a participação ativa de todo o corpo, interligado em busca da expressão de uma verdade, desde o aquecimento corporal. Não existe um momento para treinamento específico da voz, separadamente do corpo. Com Hugo, o trabalho é feito de maneira integrada, por meio de atividades corporais e vocais ao mesmo tempo, característica que dialoga com a condução de Grotowski, em que:
o que não deveriam fazer é, a meu ver, muito mais importante; quer dizer que não devem fazer exercícios vocais, mas devem usar a voz em exercícios que envolvam todo o nosso ser e nos quais a voz irá se liberar sozinha. Talvez devam trabalhar falando, cantando, mas não devem trabalhar a voz, devem trabalhar com todo o seu ser, com o todo o corpo. (GROTOWSKI, 2010, p. 158)

Uma forma de melhorar a expressividade oral dos atores é por meio de um trabalho explorativo com a dicção. Para isso, houve a solicitação da leitura oral, em que era necessário ler o texto e repetir exaustivas vezes, em busca de uma totalidade.  Conforme defende FORTUNA (2010), “A leitura em voz alta é uma verdadeira arte. Possivelmente, bem mais difícil e complexa do que a representação teatral. Geralmente, não lhe damos muita importância. A leitura em voz alta educa os músculos da fonação e da articulação, disciplinando os movimentos respiratórios.” Assim, muitas vezes, foi possível apreciar o crescimento da expressão oral do ator ao seguir as orientações dadas. Hugo Rodas tem a capacidade de agir na sutileza. Às vezes, apenas a diferenciação de uma entonação em uma palavra fazia a cena crescer em expressividade poética. Mais do que nunca, a língua era tratada como algo vivo, em que as palavras precisavam ser “mastigadas”, sentidas, vindas de dentro para fora. A oralidade deveria acompanhar o trabalho corporal em todo instante. Hugo Rodas chegou a criar uma nomenclatura para isso, a qual denomina: Oralidade Muscular, em que se exige total entrega corpórea, emocional e vocal. Tudo precisava estar conectado, vibrando junto. Os atos cênicos também deveriam falar por si, impregnando a cena de completude. Novamente, podemos encontrar um diálogo com FORTUNA:
A que estrutura textual/sonora referimo-nos nestas relações? A uma estrutura muito, mas muito maior do que simplesmente a que faz o ator falar; mais extensa do que a simples e óbvia forma técnica; uma forma estética global, a compreender: corpo, razão, emoção, criatividade, sensibilidade, jogo, humanidade. Uma verdadeira poética da expressão oral no teatro, construída pelo maestro do jogo, o ator: o próprio jogador mágico. (FORTUNA, 2000, p. 15)

Convém ressaltar, ainda, que a língua só se realiza enquanto prática social, o que pressupõe uma interação entre os envolvidos. Será que o ator está sendo escutado por seus pares? E mais: será que está escutando seus pares adequadamente? Sabe-se que, muitas vezes, na atualidade, existe uma grande dificuldade em se escutar o outro efetivamente. Isso não pode estar assim na cena dirigida por Hugo; ao contrário: há um coletivo que precisa estar conectado, sintonizado e afinado; pois é “uma orquestra que conta histórias”. Hugo, diretor exigente, busca essa integração constantemente, verificando, intervindo, pedindo que se diga novamente, que se experimente de outras maneiras, que busquem outras possibilidades... E, assim, a palavra nos permite adentrar no fluxo ininterrrupto do discurso dos atores, cada um a seu modo, compondo os acordes da grande sinfonia, lembrando, ainda, conforme afirma FORTUNA (2000): “o objetivo final do ator é, mais que persuadir, enfeitiçar a plateia (...) O ator deve ser incentivado a jogar permanentemente, procurando ser o maestro genial de um jogo fascinante: a oralidade em sedução”. Hugo Rodas parece ter domínio sobre como conquistar essa sedução, por meio das palavras, buscando a magia de sua expressão em plenitude. Algumas vezes, por meio de estímulos vários, as palavras vão surgindo soltas, desconexas, aleatoriamente. Assemelha-se a uma brincadeira com as palavras, pois é bastante lúdica a provocação. Os atores vão entrando na viagem com o diretor e as palavras começam a ganhar corpo, vão construindo uma semântica subliminar, a criatividade começa a fluir com a participação de todos e não demora muito para virarem poesia e... música. Nesse momento, Hugo Rodas se mantém presente, vívido, entregue ao que, na vida, aprendeu a amar fazer: dirigir, ensinar, conduzir... enquanto é! O resultado desse trabalho? Novamente, um diálogo com Grotowski:
Há algo de incomparavelmente íntimo e fecundo no trabalho com o ator entre a mim. Deve ser atento, confiante e livre porque o nosso trabalho é explorar as suas possibilidades extremas. O seu crescimento é seguido com observação, estupor e desejo de ajudá-lo; o meu crescimento é projetado sobre ele, ou melhor, é descoberto nele – e o nosso crescimento comum torna-se revelação. Isto não é instruir um aluno, mas total abertura a uma outra pessoa onde se torna possível o fenômeno de um “nascimento duplo ou compartilhado”. O ator renasce, não somente como ator, mas como homem – e com ele, eu renasço. (GROTOWSKI, 2010, p.112)

Hugo Rodas faz a diferença na vida profissional e pessoal das pessoas dirigidas por ele, conforme depoimentos das mesmas. É uma espécie de mago, de mestre, de maestro, entregue com paixão e intensidade ao seu ofício, de reger uma orquestra que conta histórias.

Referências

FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo: AnnaBlume, 2000.

__________, Marlene. Calíope: a musa grega da eloquência incorporando-se à oralidade do ator teatral. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/126371950371322257308648604450212363076.pdf

GROTOWSKI, Jerzi. O teatro laboratório de Jerzi Grotowski 1959- 1969/ textos e materiais de Jerzi Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugênio Barba; curadoria de Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari; tradução para o português Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC, 2010.

STANISLAVSKI, Constantin S. A Construção da Personagem, 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 106.

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